quarta-feira, 24 de março de 2010

É inevitável, uma criação puxa a outra

Sempre que percebo que alguma coisa que faço vai ganhar vida própria eu reservo a ela um espaço próprio. E isso mais uma vez aconteceu.

Há muitos meses, numa noite alucinadamente febril, na qual escrever foi a única solução que encontrei para tanta dor e suor, comecei algo que deixei incompleto, esquecido por muito tempo. Era a dura época de cursinho, na qual eu tinha de decorar fórmulas que, ainda continuo a afirmar, não me servirão de nada.

Passado. E que seja sempre assim.

E hoje, quando menos esperava senti novamente o chamado pelo qual eu sempre aguardo. Um chamado tão intenso que me impede de dormir, mesmo que eu esteja madrugada adentro. O chamado das palavras. Palavras que querem se libertar de mim.

E nessa vontade de ganhar o mundo, elas me conduziram de volta àquela noite de febre, e ao meu amado Três Quartos, que por mais esquecido que estivesse ainda vivia dentro de mim.

Sinto que é chegada a hora deu continuar do ponto onde parei e concluir o que comecei. Abrir ou fechar definitivamente aquela porta, amarela no corredor, e marrom-avermelhada por dentro. Cor de terra e sangue.

Portanto, após escrever o que por meses mantive encarcerado, decidi criar um outro blog. Pois o Meu Estranho Mundinho funciona como uma grande mãe, que gera filhos e mais filhos. Alguns por aqui permanecem. Outros, amadurecem tanto, que logo saem do lar original.

E assim nasceu o Tr3s Quartos, um espaço único para aquele reino de poeira e delírios, de homens sozinhos e espelhos manchados.


Convido todos a abrirem a porta, sem deixar muita luz entrar, e penetrar numa terra de papel e imaginação. Com um cheiro de pizza, e algum mofo.

Três Quartos - III

A chama ardia. Dançava entre seus dedos e queimava levemente sua frágil pele. Não havia muito a se ver por ali: uma cama suja, com um lençol revirado e rasgado, livros espalhados por todo o quarto e pedaços de papel, provavelmente anotações desperdiçadas. Havia também um espelho, um pouco sujo e velho. O homem aproximou-se do espelho, passou o punho esquerdo por ele esperando que assim pudesse enxergar melhor. E enxergou. Não a si mesmo, mas ao outro homem que ali no quarto estava sentado.

O homem trabalhava num fórum. Nos arquivos subterrâneos e empoeirados, cheio de traças, aranhas e doenças respiratórias. Lá ele desperdiçava um terço do seu dia, lendo coisas inúteis e organizando a vida de outros, enquanto a sua estava uma bagunça.

Há três anos terminara com sua namorada, ou melhor, sua noiva. Todos eram felizes até então. Ele era um bom advogado, trabalhava pouco, ganhava muito. Sua companheira uma médica bem sucedida. Pediatra. Eram donos de uma grande casa com três carros na garagem. Comiam o melhor que o dinheiro podia pagar, vestiam-se da maneira mais elegante que podiam. Eram ricos.

A visão de outra pessoa naquele cômodo o assutou de modo tão intenso que suas mãos não suportaram segurar mais o isqueiro, e as trevas cairam sobre seus olhos.

O casamento estava marcado para dali a cinco meses. Seria em junho, num lugar frio, numa serra em meio a pinheiros e música clássica. Sua noiva estava grávida, a criança nasceria no calor de janeiro, e enquanto os meses de inverno não chegassem, a noiva se recuperaria do parto, que sempre deixa as mulheres fragilizadas.

A gravidez sem dúvida alguma estreitou e muito o laço entre o casal. Eles experimentaram amor de verdade pela primeira vez, pois havia algo que os unia, algo que para sempre os ligaria. Ser pai, ser mãe, dera tanto sentido a vida dos dois, e tomara tanta importância naquela relação que ambos deixaram de viver para si próprios, e passaram a depender daquela nova existência.

O homem não se movia. Sequer respirava. Pela segunda vez na sua vida sentiu-se perdido, sozinho, ameaçado e nu diante de um outro que detinha todo o poder no jogo. No silêncio ele escutou uma respiração que lentamente se acelerava, como um lobo que se prepara para o ataque, deixando a adrenalina correr lentamente pelas suas veias.

E o líquido desceu, e junto com ele sangue. A mulher entrara em trabalho de parto, porém algumas complicações pareceram surgir no último dia de gravidez, e a corrida alucinada ao hospital se deu. Mas não foi o suficiente. Entre sujeira, sangue e dor havia morte. A criança nascera sem vida.

Lágrimas correram pelas faces tanto do homem quanto da mulher. Eles esperavam tanto pela vida que gerariam, pelo filho que chamariam deles, pelos risos, pela alegria. Nada os faria mais felizes, tão completos, unidos. E a morte que desceu pelas coxas trouxe consigo outro fim. E em poucos meses cada um seguia seu caminho: a mulher buscava outra vida, o homem, nada mais queria.

"Eu o estava esperando, me perguntava se você realmente viria" - uma voz masculina no quarto escuro se dirigira ao homem. Esse por sua vez novamente estremeceu. Aquele som, aquela voz, era tão familiar, tão aconchegante e ao mesmo tempo ameaçadora. Ele temia.

Morte. Não só para seu filho, ou para seu relacionamento, mas também para ele. Sua vida perdera o sentido. Os casos no escritório de advocacia eram passados a outros colegas, trabalhar não fazia o menor sentido, conviver com outras pessoas muito menos. A alegria passou a fazer parte de um passado distante, e os planos de felicidade foram enterrados juntos com o bebê num caixão branco. Morte.

O homem no quarto, assustado, abaixou e começou a tatear o chão a procura do seu isqueiro verde. Ele não estava ali, teria rolado para longe? Estaria sob algum móvel ou roupa suja?

Ele vendera seu carro, a casa, sua esposa ganhou judicialmente, suas roupas foram vendidas e renderam-lhe uma boa quantia, afinal, ele só vestia o melhor. Seus pertences foram encerrados num galpão que ele alugara por um ano, próximo ao porto.

Precisava de um lugar, um teto para dormir. Os hotéis caros estavam foram de cogitação, pois ali ele esbarraria a todo momento com rostos conhecidos, e o que ele menos precisava no momento era de palavras amigas e de consolo. Ele queria o isolamento, uma vida diferente.

No quarto o homem escutou um ranger, provavelmente de uma cadeira. E novamente temeu.

Conheceu então os bairros pobres, imundos e prostituídos. Corpos sujos se esfregando, repletos de doenças e imundícies. E a miséria era incomparável. Ele jamais imaginara o que significava pobreza, agora sentiria isso na pele. Não que fosse pobre, mas ali decidira recomeçar. Ou pelo menos tentar.

E assim conhecera aquele cortiço, de quartos baratos e encardidos. Repleto de portas iguais e muitas sem numeração, o que sempre o confundia. Sua figura era estranha para os moradores dos subúrbios, pois apesar da negação à antiga vida, sua pele clara e seu cabelo liso aliado aos seus olhos claros denunciavam sua origem. Pois naquela cidade, a cor dizia muito sobre as pessoas.

Morte. Seu filho morrera e com ele a antiga vida.

Luz.

Trevas. Para as trevas ele se retiraria até que a vida voltasse a fazer sentido.

Um brilho. Atrás do homem que temia olhar pro espelho e enxergar de onde aquilo vinha.

Dor. Perdera tudo o que tinha, sua amada mulher, aquela que ele escolhera para o resto da vida.

Mas não pode evitar e viu.

Silêncio. Era tudo do que precisava naquele momento, no qual toda palavra soaria como o som de uma lâmina rasgando lentamente a pele.

O outro homem estava sentado numa cadeira de madeira no outro canto do quarto. As pernas juntas e coladas ao chão, vestindo um terno preto extremamente amassado. Na sua mão direita segurava um isqueiro verde, o isqueiro do homem, que iluminava o quarto.

segunda-feira, 22 de março de 2010

A verdade é um espelho que se quebrou, e cada um pegou um pedaço

Há poucos dias tive uma conversa com um amigo sobre diferenças culturais que me deixou muito inquieto. A ponto de levar a discussão a outros círculos de amizade, e o assunto não foi menos polêmico.

Tudo começou quando li uma reportagem que tratava da proibição da homossexualidade em Uganda. Sim, proibição. Aquele indivíduo que fosse incriminado sofreria duras penas, até mesmo de morte.

Para nós ocidentais, e especialmente brasileiros, isso soa como algo terrível, que fere os principais direitos humanos, é um assunto particular, e deve ser tratado como tal. Logo, nos vem à mente frases como "A África realmente tem sociedades atrasadas". E essa frase ficou ecoando na minha cabeça por dias.

A discussão ainda levantou outros tópicos como por exemplo, a mutilação das meninas de certas regiões africanas, que jamais saberão o que é o prazer sexual. Atos como esse só reforçam a ideia de que aquele povo sofre as dores de um grande atraso, socio-cultural, que impede que a felicidade e a igualdade reine por aquelas terras.

Mas então me vem a pergunta: Quem somos nós para afirmar que a África tem sociedades atrasadas? E se tiver, qual é a sociedade evoluída que vai avaliá-la? A nossa?

Por mais que eu defenda os direitos dos homossexuais, das mulheres, e de qualquer outro ser humano, creio que devo ser mais cuidadoso ao avaliar certos casos. Se Uganda quer proibir os relacionamentos homossexuais, certamente há um porquê, uma justificativa, e uma razão pela qual o povo daquele país julga relações com pessoas do mesmo sexo como algo negativo.

É difícil dizer isso, mas, se um povo decide por um lado, o que podemos fazer para mudar essa realidade? Impor mais uma vez nosso modelo cultural ao outro, ao africano? Vale a pena lembrar que, essa imposição, essa intromissão dos valores europeus naquele continente é sem dúvida o grande responsável pela realidade daquelas pessoas que sofrem as mazelas da pobreza, guerra e medo.

Talvez, se as nações mais poderosas não tivessem esse ímpeto de sempre se intrometerem nas questões externas, no andamento de um outro Estado, as coisas fossem muito diferentes. Se o cristianismo europeu não tivesse alcançado Uganda, talvez ser homossexual fosse algo natural para a população daquele país.

Todo povo e país é soberano, pelo menos é assim que eu vejo o mundo. Nós como brasileiro temos essa ideia embutida dentro de nós, porém em algum canto escuro da nossa mente, pois se tratando de nossa Amazônia por exemplo, não hesitamos em dizer "A floresta é nosso, assunto nacional, não se intrometam". Porém, quando somos nós que apontamos os "defeitos" nos outros, tudo fica muito simples.

Não venho aqui dizer que sou a favor de pena de morte aos homossexuais em Uganda, muito menos defendo a mutilação das meninas - pobres meninas - que farão sexo apenas para procriação.

É difícil ser neutro nessas situações, eu mesmo não sou. Pois se pudesse mudaria essa realidade na qual as garotas e os gays vivem. Porém, o que faria? Provavelmente tentaria encaixá-los na realidade do Brasil, um lugar que para mim é bom, me faz sentir bem.

Essa é minha realidade. Minha verdade. Se um europeu a criticar e tentar me tirar do meu mundo, não ficarei contente com ele. Pois não quero uma visão de mundo diferente da que eu tenho, pois a vejo como a melhor. E estou feliz inserido nela.

Então, antes de pensar em mudar a realidade de um outro povo, devemos primeiro refletir, e nos questionar se aquele povo pretende a mudança. Ou estarão eles satisfeitos com a vida que levam?

Hoje ouvi uma frase muito interessante: "Para que se construa os direitos universais, será necessário destruir as culturas locais". E é isso que estamos fazendo. A humanidade sempre o fez. É só olhar a nossa volta e percebemos isso. Éramos uma terra de pagãos, hoje somos um bom país cristão, do jeito que os jesuítas desejavam. A verdade que vieram aqui plantar.

Encerro com um provérbio que curiosamente acabo de receber via orkut de um amigo:

"A verdade é um espelho que caiu das mãos de Deus e se quebrou. Cada um recolhe o pedaço e diz que toda a verdade está naquele caco."

Ditado Iraniano

Não devemos buscar conceitos universais de cultura, sociedade e comportamento, pois isso nada fará além de destruir povos e engolir costumes seculares, por vezes milenares. Não devemos buscar verdades eternas construídas com base nas diferenças, e nos conflitos entre povos, mas sim assimilar o que de melhor há em cada comportamento, e assim cultivar as diferenças, que é uma das melhores coisas que temos.

sábado, 20 de março de 2010

Ah, a Fantasia

Quando criança eu me indagava se, ao crescer, ainda iria gostar de livros sobre fantasia, trilha sonora de filmes e de sonhos. Eu dizia a mim mesmo que sim, pois envelhecer não tem que significar mudar, embora não tivesse nenhuma certeza quanto a isso. Deveria ter.

Hoje, almoçando no shopping não pude deixar de passar numa livraria, um dos lugares nos quais me sinto bem, como se nada além de livros existisse no mundo; seria feliz assim. E dentre as diversas colunas repletas de histórias e conhecimentos, sempre acabo me dirigindo para as prateleiras entituladas "infanto-juvenil". Na qual há heróis, donzelas, grandes vilões e felicidade eterna escondida dentre aquelas páginas secas.

E curiosamente me peguei lendo Alice no país das maravilhas, uma história que todos, inclusive eu, conhecem de ponta a ponta, de trás para frente. Porém, não me canso de abrir aquela publicação e encontrar um mundo de fantasia e de sonhos, no qual penetro e se pudesse, não sairia mais.

Ah, a fantasia. Sinceramente não sei o que seria de mim sem ela, o que eu pensaria, como eu agiria. Metade do que eu sei e sou provém dos livros, e ter sido um adolescente silencioso que não mantinha a cabeça em outro lugar, senão em realidades irreais, me protegeu de diversos perigos que surgiram no meu caminho.

Seja em Nárnia, na Terra-Média, em Hogwarts...seja onde for, lá eu estava sendo preparado para a minha vida adulta, na qual eu não posso me ausentar por muito tempo da realidade. Pois fechar os olhos e sonhar pode ser arriscado.

Mas não lamento, vivi longas eras em terras longínquas, sem ter que enfrentar o mundo real, e agora que o tenho de fazer, sinto-me protegido por todos aqueles deuses e seres fabulosos, que hoje vivem dentro de mim, e se manifestam nos meus momentos mais duros. Aqueles momentos nos quais não posso recorrer a criança silenciosa que eu era, e que ainda posso sentir, vivendo em algum lugar da minha existência. Entre livros empoeirados.

sexta-feira, 19 de março de 2010

De um lado e de outro

Há pouco a ONU divulgou mais um dos seus relatórios sociais, nos quais o Brasil, tradicionalmente, figura nas piores posições.

Os dados atuais dizem respeito às cidades com maior desigualdade social do mundo. Dentre elas, estão Goiânia, Fortaleza, Belo Horizonte e Brasília (sim, a mesma Brasília de IDH elevado). A divulgação dessa informação para nós brasileiros não chega a fazer cócegas, pois não precisamos de números de orgãos internacionais para conhecermos a realidade dos centros urbanos do nosso país, que a cada dia tornam-se mais ricos e mais pobres. Mais desiguais.

É claro que desigualdade social não é um (des)privilégio de países subdesenvolvidos, pois cidades como Washington D.C figura dentre aquelas cujo abismo entre as classes altas e baixas é mais profundo que o Grand Canion. Porém, em nações como o Brasil, esse problema toma proporções muito maiores que nos E.U.A por exemplo, uma vez que ser pobre por aqui, muitas vezes significa estar fadado a uma vida de privações com um futuro sem muitas expectativas de mudança.

No Rio de Janeiro por exemplo, uma das maiores reclamações dos jovens é quanto a educação técnica que o governo estadual lhes oferece. Pois não gera reais resultados com retorno financeiro. Empregos, em uma palavra.

De qualquer modo formar massas de técnicos alienados para trabalhar em multinacionais já é um grande erro desse país; porém, pelo menos de um emprego digno os jovens necessitam, uma vez que educação de verdade, baseada em ideias e no pensamento o governo não oferece.

E dentre o ruim e o pior, parece que tem-se eleito o pior, pois além de alienados, agora os jovens também andam desempregados. E no que isso resulta? Em mais uma geração de pobres.

Às vezes eu me indago: "Afinal, para que serve essas pesquisas da ONU? Para mostrar ao mundo desenvolvido como é dura a realidade dos pobres amigos do Sul?"

Desconfio que sim. Pois não é de hoje que nosso país é alertado quanto os problemas sociais que enfrentamos, e não tenho notado muitas mudanças nos últimos anos.

Disseram-me que a população da favela decaiu 16% nos últimos 10 anos, e que a classe média representa 51% do povo do Brasil, e que a luta pela desigualdade social vem gerando resultados, e resultados expressivos.

O engraçado é que fora da tela deste computador, não consigo enxergar essa mudança que nosso amado PT tem proclamado há oito anos. Pois a cada vez que pego um ônibus, trem ou metrô, deparo-me com uma realidade muito semelhante a essa apontada pela ONU: de um lado da janela do coletivo vejo um conversível vermelho, do outro, uma favela vastíssima, que se perde no horizonte. Nesse tal país de todos.