quarta-feira, 24 de março de 2010

Três Quartos - III

A chama ardia. Dançava entre seus dedos e queimava levemente sua frágil pele. Não havia muito a se ver por ali: uma cama suja, com um lençol revirado e rasgado, livros espalhados por todo o quarto e pedaços de papel, provavelmente anotações desperdiçadas. Havia também um espelho, um pouco sujo e velho. O homem aproximou-se do espelho, passou o punho esquerdo por ele esperando que assim pudesse enxergar melhor. E enxergou. Não a si mesmo, mas ao outro homem que ali no quarto estava sentado.

O homem trabalhava num fórum. Nos arquivos subterrâneos e empoeirados, cheio de traças, aranhas e doenças respiratórias. Lá ele desperdiçava um terço do seu dia, lendo coisas inúteis e organizando a vida de outros, enquanto a sua estava uma bagunça.

Há três anos terminara com sua namorada, ou melhor, sua noiva. Todos eram felizes até então. Ele era um bom advogado, trabalhava pouco, ganhava muito. Sua companheira uma médica bem sucedida. Pediatra. Eram donos de uma grande casa com três carros na garagem. Comiam o melhor que o dinheiro podia pagar, vestiam-se da maneira mais elegante que podiam. Eram ricos.

A visão de outra pessoa naquele cômodo o assutou de modo tão intenso que suas mãos não suportaram segurar mais o isqueiro, e as trevas cairam sobre seus olhos.

O casamento estava marcado para dali a cinco meses. Seria em junho, num lugar frio, numa serra em meio a pinheiros e música clássica. Sua noiva estava grávida, a criança nasceria no calor de janeiro, e enquanto os meses de inverno não chegassem, a noiva se recuperaria do parto, que sempre deixa as mulheres fragilizadas.

A gravidez sem dúvida alguma estreitou e muito o laço entre o casal. Eles experimentaram amor de verdade pela primeira vez, pois havia algo que os unia, algo que para sempre os ligaria. Ser pai, ser mãe, dera tanto sentido a vida dos dois, e tomara tanta importância naquela relação que ambos deixaram de viver para si próprios, e passaram a depender daquela nova existência.

O homem não se movia. Sequer respirava. Pela segunda vez na sua vida sentiu-se perdido, sozinho, ameaçado e nu diante de um outro que detinha todo o poder no jogo. No silêncio ele escutou uma respiração que lentamente se acelerava, como um lobo que se prepara para o ataque, deixando a adrenalina correr lentamente pelas suas veias.

E o líquido desceu, e junto com ele sangue. A mulher entrara em trabalho de parto, porém algumas complicações pareceram surgir no último dia de gravidez, e a corrida alucinada ao hospital se deu. Mas não foi o suficiente. Entre sujeira, sangue e dor havia morte. A criança nascera sem vida.

Lágrimas correram pelas faces tanto do homem quanto da mulher. Eles esperavam tanto pela vida que gerariam, pelo filho que chamariam deles, pelos risos, pela alegria. Nada os faria mais felizes, tão completos, unidos. E a morte que desceu pelas coxas trouxe consigo outro fim. E em poucos meses cada um seguia seu caminho: a mulher buscava outra vida, o homem, nada mais queria.

"Eu o estava esperando, me perguntava se você realmente viria" - uma voz masculina no quarto escuro se dirigira ao homem. Esse por sua vez novamente estremeceu. Aquele som, aquela voz, era tão familiar, tão aconchegante e ao mesmo tempo ameaçadora. Ele temia.

Morte. Não só para seu filho, ou para seu relacionamento, mas também para ele. Sua vida perdera o sentido. Os casos no escritório de advocacia eram passados a outros colegas, trabalhar não fazia o menor sentido, conviver com outras pessoas muito menos. A alegria passou a fazer parte de um passado distante, e os planos de felicidade foram enterrados juntos com o bebê num caixão branco. Morte.

O homem no quarto, assustado, abaixou e começou a tatear o chão a procura do seu isqueiro verde. Ele não estava ali, teria rolado para longe? Estaria sob algum móvel ou roupa suja?

Ele vendera seu carro, a casa, sua esposa ganhou judicialmente, suas roupas foram vendidas e renderam-lhe uma boa quantia, afinal, ele só vestia o melhor. Seus pertences foram encerrados num galpão que ele alugara por um ano, próximo ao porto.

Precisava de um lugar, um teto para dormir. Os hotéis caros estavam foram de cogitação, pois ali ele esbarraria a todo momento com rostos conhecidos, e o que ele menos precisava no momento era de palavras amigas e de consolo. Ele queria o isolamento, uma vida diferente.

No quarto o homem escutou um ranger, provavelmente de uma cadeira. E novamente temeu.

Conheceu então os bairros pobres, imundos e prostituídos. Corpos sujos se esfregando, repletos de doenças e imundícies. E a miséria era incomparável. Ele jamais imaginara o que significava pobreza, agora sentiria isso na pele. Não que fosse pobre, mas ali decidira recomeçar. Ou pelo menos tentar.

E assim conhecera aquele cortiço, de quartos baratos e encardidos. Repleto de portas iguais e muitas sem numeração, o que sempre o confundia. Sua figura era estranha para os moradores dos subúrbios, pois apesar da negação à antiga vida, sua pele clara e seu cabelo liso aliado aos seus olhos claros denunciavam sua origem. Pois naquela cidade, a cor dizia muito sobre as pessoas.

Morte. Seu filho morrera e com ele a antiga vida.

Luz.

Trevas. Para as trevas ele se retiraria até que a vida voltasse a fazer sentido.

Um brilho. Atrás do homem que temia olhar pro espelho e enxergar de onde aquilo vinha.

Dor. Perdera tudo o que tinha, sua amada mulher, aquela que ele escolhera para o resto da vida.

Mas não pode evitar e viu.

Silêncio. Era tudo do que precisava naquele momento, no qual toda palavra soaria como o som de uma lâmina rasgando lentamente a pele.

O outro homem estava sentado numa cadeira de madeira no outro canto do quarto. As pernas juntas e coladas ao chão, vestindo um terno preto extremamente amassado. Na sua mão direita segurava um isqueiro verde, o isqueiro do homem, que iluminava o quarto.

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